Falar de energia e de geopolítica energética, nestes tempos de mudanças significativas em muitos domínios da nossa sociedade, tem a vantagem inerente aos constantes desafios que a vida e o mundo colocam.

Com a transição energética e digital em curso, as alterações climáticas e os modelos de baixo carbono ou de emissões zero como pano de fundo, são requeridas, como se tem visto amiúde, a apresentação de estudos, webinares em tipologia de confinamento, modelos estratégicos, cenários vários, previsões (abundantes) e metas. Em simultâneo, a apresentação das devidas declarações políticas de base orientadora.

Em comum todos eles apontam, como já se aperceberam, para os anos «cabalísticos» de 2030 e 2050. E assim chegamos (em modo de previsão) sem dar por isso, à primeira metade do século XXI!

Os diversos planos estratégicos das organizações internacionais, das multinacionais energéticas, os planos nacionais para a Energia e Clima dos vários países, roteiros de Neutralidade Carbónica, até ao recente «European Green Deal» e à legislação europeia específica já publicada ou a publicar, todos eles acertam os seus relógios e calendários por estas datas.

Inerente a todos estes cenários, somos confrontados com, e de novo, à chamada do hidrogénio ao palco das energias do futuro próximo. E como disse em entrevista ao JE o Ministro do Ambiente e Ação Climática, Matos Fernandes «(…) não vamos construir o futuro com modelos do passado[1]» e claramente uma das grandes apostas dos planeamentos atuais é o hidrogénio. Portugal pretende dar corpo ao Projeto de Gases Renováveis, e atingir em 2030 um valor de 1 GW. Este projeto será obtido por eletrólise a partir de água do mar, «pressupondo preços competitivos mesmo com países do Norte da Europa».

Também Benoît Potier executivo da Air Liquide and co-chair do Hydrogen Council em entrevista à Forbes: reforça esta nova vaga tecnológica «2020 marks the beginning of a new era for energy […] A clean energy future with hydrogen is closer than we think because the industry has been working hard on addressing key technology challenges».

Contudo, sempre que se fala de hidrogénio e da sua aplicação, regressa a ideia de uma certa promessa incerta, como nos explicava (e bem) Leonardo Maugeri[2]. Ainda agora, ninguém deixará certamente de colocar um ponto de interrogação, sobre qual será verdadeiramente o seu impacto, no futuro modelo energético global.

O hidrogénio conhecido deste o século XVIII e primeiro elemento da Tabela Periódica da química moderna, apresenta em termos técnicos um baixo conteúdo energético por unidade de volume, e necessidade de maior pressão atmosférica, nas mesmas condições técnicas, que o gás natural por exemplo. Também a sua passagem para a forma líquida, implica uma temperatura de (-2530C), mais difícil de atingir que o gás natural (-1610C).

Desde meados dos anos setenta do século passado, que por várias vezes o interesse do setor energético se voltou para o hidrogénio; contudo foram sempre os custos e as performances tecnológicas envolvidas, em comparação com os combustíveis fósseis e mesmo o nuclear, que foram deixando cair o seu potencial interesse comercial. O hidrogénio tem a sua história algo ligada a alguns números 13 do azar, como o conhecido «síndroma de Bradenburgo» e o lançamento do «BMW Hidrogen 7».

De acordo com o Relatório da IEA «The Future of Hydrogen» do G20 em 2020, os custos previstos para a produção de hidrogénio em 2030, estarão intrinsecamente ligados aos custos das renováveis, e que serão necessariamente muito menores, e que associados ao fator primordial do «scaling up» do H2, permitirão uma queda estimada de cerca de 30% nos custos diretos de produção.

A partir 2005 que os governos dos EUA, Europa e Japão têm reforçado a investigação e o desenvolvimento no H2 e fuel cells, e mais recentemente também a China. Em 2018 são já muitos os países a dar passos e anunciarem projetos e road maps neste campo: desde a Austrália, EUA, Noruega, Países Baixos, Reino Unido, Alemanha, Suécia, Coreia do Sul, Japão e outros.

O hidrogénio pode ser produzido por várias fontes, e só faz sentido para a Europa, articular projetos para o designado hidrogénio verde, ou seja produzido a partir de fontes renováveis. O H2 «blue» por seu lado é produzido a partir de fontes fósseis, mas com a possibilidade de redução de CO2 através de métodos «decarbon, capture, usage and storage» (CCUS).

Mas convém lembrar, que atualmente, a grande maioria do hidrogénio continua a ser produzido a partir de fontes fósseis, em especial do gás natural (steam reforming) (76%) e do carvão (23%), naquilo que designamos por hidrogénio «brown ou grey». Das cerca de 70Mt produzidas por ano, resultam 830 Mt de CO2 lançadas na atmosfera.

Os grandes focos estratégicos de implantação do H2 deverão contemplar «ab initio» os já existentes portos e zonas industriais dedicadas, as infraestruturas de gás natural e gases renováveis, assim como os transportes e logística associada, nomeadamente os pesados de mercadorias e frotas de veículos fuel cell, sem perder de vista a complementaridade do circuito de navios e rotas marítimas de âmbito internacional.

O transporte e o armazenamento do H2 são fatores determinantes no processo comercial e competitivo. A compressão, a liquefação ou outros métodos a utilizar, dependerão sempre das distâncias envolvidas. A possibilidade de utilização das redes de transporte rodoviárias em gás ou líquido ou em pipeline próprio ou nas redes de gás natural (em pequenas percentagens) é outra das possibilidades. Já existem cerca de 5.000 km de pipelines de H2 no mundo dos quais (EUA 2600 km, Bélgica 610 km, Alemanha 376 km, França 300 km, Canada 147 km e Países Baixos 237 km), cujo destino principal são as refinarias e complexos industriais químicos.

A produção do hidrogénio é sobretudo dirigida para o setor industrial, nomeadamente o refinamento do petróleo e biofuels (33%), produção de uso químico como a amónia (27%), de metanol (11%) e utilizado na produção de aço, ferro industrial e materiais de construção. A China é o maior produtor mundial com cerca de ⅓ de toda a produção. Produz cerca de três vezes mais que toda a Europa
no seu conjunto.

Encontram-se já em estudo e desenvolvimento, a criação de hubs industriais costeiros, dotados de várias potencialidades de ligação e conexão com os utilizadores comerciais e logísticos. Na região do Mar do Norte situam-se vários hubs industriais de referência, com capacidade de storage de CO2, apoiados em offshore de eólicas e pipelines de hidrogénio. (Noruega, Reino Unido, Bélgica, Alemanha e Países Baixos), e que desenvolvem já bastantes projetos locais. Também em março de 2020 a Comissão Europeia lançou o «Clean Hydrogen Alliance» e a «Renewable Energy Diretive» (RED2), procurando dinamizar os projetos europeus.

O novo conceito de hidrogénio «valley[3]» pretende criar hubs de pequena dimensão, descentralizados, e associados à produção de hidrogénio verde, num espaço económico tipo «off-grids» na base de emissões zero. É o caso do projeto em curso em Orkney Islands na Escócia, e outros semelhantes a serem protagonizados na Alemanha, na França e no norte dos Países Baixos. Também a Shell anunciou que está em preparação um projeto piloto no «offshore wind farms» nos Países Baixos, no Mar do Norte.

A captação e a storage resultantes do excesso de eletricidade produzido pelas renováveis, e processos de produção como o gas-to-gas (G2G), com «carbon capture and storage» (CCS) e o power-to-gas (P2P) e mais recentemente o Power-to-X, são modelos tecnológicos, que cada vez mais estarão na ordem do dia.

Os investimentos na tecnologia fuel cell têm como prioridade o setor de transportes e as pequenas companhias de eletrólise e na qual a Europa pretende obter aqui uma liderança global. Como refere Bart Biebuyck «A tecnologia do hidrogénio nasceu e cresceu na Europa, não podemos fazer que aconteça como com a PV e as baterias, em que criámos estes desenvolvimentos e quem produziu foi a China e outros. Queremos exportar e manter empregos na Europa[4]».

Estão criadas as bases para que a tecnologia hidrogénio em versão clean e sustentável, tendo por base as energias renováveis na sua produção, possa ser um êxito nas próximas décadas. A Europa e o seu projeto «Green Deal», terão de contar com o hidrogénio para atingir as metas de descarbonização a que se propuseram.

A disputa geopolítica sobre o comércio energético do hidrogénio não se faz sentir por agora, nem se saberá como será orientado. Percebe-se que muitos Estados, incluindo a China continuam a apostar nos combustíveis fósseis, mais baratos, para a sua produção e utilização.

A importância do CertifHy e do Guarantees of Origin (GO) na Europa, que permitirá garantir a certificação verde na aquisição de hidrogénio mesmo vindo de países fora do continente, é uma medida de salvaguarda e de proteção dos investimentos europeus.

Não há almoços grátis, como sabemos, e os projetos de hidrogénio nesta fase são financeiramente incertos, com custos de investigação e desenvolvimentos elevados. O seu mercado futuro pode ser muito amplo e alargado e mesmo competitivo, e ser inequivocamente a base para uma energia sustentável nos próximos anos, mas a incerteza ainda predomina. Nem todos as regiões e continentes partem do mesmo patamar e com os mesmos objetivos.

O futuro global desta tecnologia, dependerá muito do interesse dos grandes Estados industrializados, das potências regionais, e da competitividade que o mercado energético acrescenta ao nível de outras energias, para atingir as metas apontadas para os tais anos «cabalísticos», e contemplados nos atuais cenários.

Tal como o hidrogénio pode ser na atual linguagem técnica: verde, azul ou ainda cinzento ou negro, os avanços e as disputas energéticas e comerciais a nível global e regional, terão também de escolher as suas cores, em face dos interesses estratégicos a atingir nos vários momentos.

É a «geopolítica das cores» a ditar o futuro dos anos mágicos da energia.


08 de junho de 2020

Eduardo Caetano de Sousa
Vogal da Direção

[1] O Jornal Económico de 08 de maio de 2020.

[2] Leonardo Maugeri,« Con tutta L’energia possibile», Spending & Kupfer 2008

[3] https://www.eusew.eu/developing-hydrogen-valleys-foster-economic-growth-european-regions

[4] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6666022899377295360/