É estranho e torna-se muitos vezes desconfortável, estar atento e ler, o que se vai dizendo e pensando sobre a Europa atual, a nossa; e as consequentes relações de poder dos principais atores no Sistema Internacional. Quem descreve esta narrativa, são os cientistas políticos, políticos ativos, think tanks, estrategas, economistas e comentadores generalistas, um pouco por todos os continentes.
E o facto é este: a presença geopolítica da Europa no Mundo, nunca foi tão diminuta ao longo dos séculos e, de tão reduzida relevância nas grandes decisões internacionais. Por norma nos cenários internacionais, ou a reconhecemos distante, ou a sua ação surge, amiúde e dissonante, a várias vozes.
Não iremos – ficaria bastante fora do nosso limitado objetivo -, recorrer aos pais fundadores da geopolítica mundial do século XIX e XX, a filósofos e analistas de estratégia, ou mesmo a diplomatas credenciados. Apenas dar um conteúdo simples à realidade presente.
Se não vejamos: o espantoso crescimento tecnológico, comercial e industrial da Ásia, se bem que em modelos diversos, pouco tem dito à política comercial e industrial europeia; o investimento no comércio energético e na transição digital estão também muito afastados. A grande metrópole asiática é neste momento o palco da inovação, da indústria e do expansionismo do mercado financeiro. E porque não dizer, da modernidade.
A China em modo de «go out strategy» definiu mesmo uma estratégia de envolvimento comercial global, a que deu o nome de «Nova Rota da Seda», que atravessa o mundo e chega à Europa via Mediterrâneo. A sua influência é transversal a múltiplos negócios internacionais, tecnologias e investimentos gigantescos, com recurso a modalidades do tipo «wholly-owned», ainda que em menor grau, «joint-venture», ou mais subtilmente em «non-equity arrangement».
De igual forma, a Rússia e os Estados Unidos têm definido e delineado estratégias a curto e médio prazo, nas quais a Europa, por norma não é parceiro determinante. A Rússia conceptualizou um programa geoestratégico bem definido, que tem cumprido com distinção: desde o Ártico à exportação do Gás Natural para a Europa via Nord Stream 2 pelo Báltico, para a China (Power of Siberia) e Turquia (Turkish Stream), até ao êxito retumbante na guerra da Síria, e à influência decisiva no Mar Negro, Médio Oriente e Ásia Central. Alguém houve falar da Tchéchenia? Ou nos conflitos diplomáticos no Mar Cáspio?
Os Estados Unidos baseados na sua estratégia de «America First» em modo isolacionista do atual presidente, reforçado com o conceito de «energy-dominant nation», vêm desde o tempo do presidente Obama, a colocar a Europa longe das suas prioridades e interesses, mesmo aquelas que julgaríamos por mais «afetivas». No início dos anos noventa, Henry Kissinger escrevia que «O percurso da América na política internacional tem sido um triunfo da crença sobre a experiência[1]», mas o que ressalta por estes tempos, tem sido a sua forma algo errática na gestão do complexo cenário internacional.
No Mediterrâneo, Médio Oriente e Ásia Central a presença de uma política ativa e reconhecida da Europa no seu conjunto, não existe verdadeiramente. Mas existe, na verdade, como refere Henrique Raposo um mundo pós-Atlântico; «No início do século XXI, a preocupação central é encontrar respostas para o deslocamento de poder do Atlântico para o Pacífico[2]» É neste espaço global, impulsionado pela dinâmica dos Estados asiáticos, que a indústria pesada, a robótica, a construção naval e a nuclear civil, as componentes energéticas, incluindo as renováveis, e a engenharia florescem. As megacidades modernas e sustentáveis do futuro começam a ser pensadas e executadas por toda Ásia. Não é de estranhar, por isso, que a centralidade da geopolítica global se instale nesta região do mundo.
Nas zonas propícias a conflitos e disputas, desde o sempre presente conflito IsraelÁrabe, à Palestina e Cisjordânia, Síria e Líbia e aos avanços da Turquia, ao Irão do nuclear e Iraque, até ao esquecido Iémen, entre tantos outros focos de instabilidade regional, a Europa limita-se a declarações diplomáticas de circunstância e ao apoio financeiro a organizações internacionais no terreno. A sua influência nestas regiões não obedece a uma matriz estratégica reconhecida pelas partes. Desta forma, não contribui para a resolução de conflitos e para contrabalançar a influência de outras potências e atores regionais.
Em África, na sua enorme diversidade, o futuro económico e social de grande parte dos Estados africanos passa pela China. Apoios imediatos e fundamentais no terreno versus matérias-primas existentes.
A América do Sul, por seu lado, está cada vez mais «distante da vista e do coração» e tem perdido o interesse e envolvimento das grandes potências regionais. Os interesses estratégicos da Europa no Ártico, no Cáspio, no Mar Negro e mesmo no Mediterrâneo e no Báltico, merecem simples declarações intuitivas resultantes de meras cimeiras formais.
A Europa, que não deixa de ser no seu conjunto uma grande potência económica, tem um álbum de vida longo e repleto de recordações, único na história da humanidade; nele são partilhados factos extraordinários do desenvolvimento social e humano que a todos enobrecem, mas também os acontecimentos mais trágicos.
A sua nova vida, num modelo de organização política única no mundo, onde a liberdade e a democracia têm um registo singular, é em simultâneo um referencial de prosperidade, que não pode ser omitido, que não seja por mera probidade epistémica.
O atual modelo cresceu numa alargada base geoestratégica liderada pelos Estados Unidos, após a 2ª Guerra Mundial, face aos desígnios dos avanços da União Soviética, e na salvaguarda da cultura ocidental e de liberdade, protagonizado pelo espaço geopolítico definido pelo Atlântico Norte. Os vencedores ditaram as suas regras e os vencidos procuraram «reencarnar-se», como é de prática assente no Sistema Internacional, após-conflitos globalizados. Muitos dos Estados europeus sofreram este drama.
Assim nasceria a União da Europa Ocidental (UEO) e a NATO. A geoeconomia veio de imediato com o Plano Marshall na defesa da integração da Alemanha Federal no seio de uma Europa livre e em reconstrução. Depois como bem sabemos, viria: a Comunidade Económica do Carvão e do Aço (CECA), a EURATOM, a Comunidade Económica Europeia e mais tarde a União Europeia.
A partir daqui, e com a Guerra Fria pelo meio, naquilo que foi um longo conflito geopolítico e ideológico, o conjunto dos Estados europeus com o apoio dos Estados Unidos, deram vida a um projeto de democracia, de liberdade e de paz. A integração dos Estados a Leste trouxe posteriormente à Europa, a sua centralidade e equilíbrio geográfico, com as naturais dificuldades de uma «família mais numerosa e diversa». O fim do Pacto de Varsóvia e o avanço geopolítico das fronteiras da NATO, para as imediações do quintal da Federação russa , espelharam o resultado final do conflito então vivido.
A Europa que na sua história criou as bases do estado-nação, da soberania dos Estados e do conceito de equilíbrio de poder, tem em boa razão, nações com estados de alma maiores que os seus territórios. Foi tantas vezes esta uma realidade exponenciada no passado, mas que não deixa de estar presente, com os equilíbrios que as relações entre Estados, proporcionam nas diversas circunstâncias.
O que define uma grande potência, dito nos manuais de geopolítica, são por norma: o território, a população e os recursos, as Forças Armadas, estabilidade e coesão, economia, a ciência e tecnologia e a influência. No que respeita à Europa, verifica-se que esta, de há muito, que deixou de exercer qualquer centralidade no domínio da política global. É assim em termos populacionais, na exploração, gestão e utilização das matérias-primas e demais recursos, na ciência e nos modelos tecnológicos do futuro, e na sua capacidade global de influência política e diplomática. Encontra-se por isso em evidente declínio, quando comparada com as novas potências regionais, com reconhecidas capacidades de maior intervenção a nível global.
As ameaças sistémicas recentes a que foi submetida, a crise económica e financeira de 2008/9; a crise dos refugiados, as ameaças terroristas, os populismos políticos, e o recente corona vírus, vieram reforçar a ideia da fragilidade das suas políticas de integração e de afirmação.
Mas é também na componente de defesa e de capacidade militar que deixou de exercer um nível de presença, que mereça destaque ou evidência. Ou seja do que estamos a falar é do poder a nível internacional e de relações de poder; « … a força militar não serve apenas para confrontar ameaças de segurança imediatas, a força militar serve acima de tudo, para colocar os Estados na grande mesa das potências onde se decide as regras de conduta da política internacional. Sem força militar credível e sem uma posição diplomática una e forte, a Europa não terá assento na mesa das grandes potências do século XXI[3]…».
Mas como e quando sair deste confinamento geopolítico que perdura?
A União Europeia tem sido desde a sua criação, um espaço de paz no mundo e claro, entre os seus Estados (o que nem sempre foi fácil na história europeia). A democracia e a liberdade são dois dos seus valores fundamentais e que não são negociáveis. É uma grande potência económica e cultural no planeta. As novas gerações desta nossa Europa não conhecem outra realidade!
O atual momento passa por garantir ao continente europeu, uma sociedade que ocupe a frente do desenvolvimento humano e da ciência, da cultura e da prosperidade sustentável. A Europa tem agora um instrumento que pode e deve explorar, o recente «European Green Deal»; este desígnio afirmativo, permite ter a ambição de ser uma «Global Leader» na própria expressão da Presidente da CE, Ursula Von der Leyer; o que nos leva a concluir, em bom rigor, que a UE aspira a ser uma verdadeira Potência Climática/Ambiental, no espaço geopolítico global.
Deverá assim, apelar às novas energias e à sustentabilidade do planeta, à industrialização descarbonizadada do novo setor energético e das tecnologias emergentes a desenvolver. Dando a necessária prioridade à edificação da sua própria segurança e defesa, às componentes do ciberespaço e à segurança digital, e privilegiando os modelos da intervenção comercial «made in Europa»;
«Europe does not need a ‘grand strategy’, which is a pompous term that fails to account for local and global constraints. Rather, it needs the determination and political will to develop new commercial, diplomatic and military strategic assets[4].».
Uma visão global e determinada para o futuro é sempre preferível, e por norma limitadora do crescimento dos designados populismos. A política do tiro ao alvo, é pouco remuneradora, quando tratamos de democracia e do exercício de liberdade.
O modelo de Erasmus e da juventude sem fronteiras destas décadas, tem sido mais gratificante e formador para todos os jovens cidadãos europeus, do que as muitas declarações dos seus órgãos burocráticos em Bruxelas. O passaporte europeu e a moeda única são os vetores mais extraordinários para a assimilação do que é ser na diversidade, cidadão desta Europa, composta por muitos Estados-membros.
A Europa vive no entanto um contínuo diálogo aporético, que por um lado lhe garante segurança e sentido, e que fará sempre parte da sua idiossincrasia estrutural, mas que por outro lado a constrange: a relação singular, única e determinante com os Estados Unidos; e a consequente interiorização da NATO e da relação Atlântica, como a sua «alma mater»; por outro lado, a afirmação sempre complexa, nestes domínios, das duas grandes potências europeias de pendor continental (Alemanha e a França). Acrescenta-se agora o outro momento aporético, mais recente, verificado com saída do Reino Unido; um dos principais pilares da UE.
«No sonho europeísta conta a viagem, não o destino[5]». Existe aqui algo do realismo da política internacional, numa perspetiva tipificada por Raymond Aron e na sua conceção de disputa permanente, entre o poder material e o poder normativo. A EU pós-Atlântica, só pode agora pensar de forma estratégica, e vai bem a atual Presidente da Comissão Europeia, ao referir-se a uma «Comissão geopolítica».
Os desafios passam por uma nova equação geopolítica: onde a obtenção de energia sustentável, a segurança energética e as medidas de controlo sobre as alterações climáticas, deverão poder proporcionar uma adequada Autonomia Estratégica à Europa, aliada à necessária Soberania Económica. E só desta matriz estratégica alargada, poderá resultar efetivamente o reconhecimento a prazo da Europa, como «Potência Climática/Ambiental», congregando os Estados-membros na conceptualização de uma afirmativa «Estratégia Energética e de Segurança para a Europa», que lhe proporcione um efetivo «desconfinamento estratégico»
24 de maio de 2020
Eduardo Caetano de Sousa
Vogal da Direção
[1] Diplomacia, p.12, editora Gradiva 1996.
[2] Henrique Raposo, « Um Mundo sem Europeus«, Guerra e Paz, p. 239.
[3] Henrique Raposo, « Um Mundo sem Europeus«, Guerra e Paz, p. 242.
[4] Zaki Laïdi in https://www.aspistrategist.org.au/europe-needs-to-make-some-hard-choices-in-2020/.
[5] Editorial da revista Limes, nº 1 de 2006, p 8.