Quando o Mundo se apercebeu que a ameaça do vírus que andava por Wuhan e pela China, afinal era «real», e que também ele entrava pela nossa porta, pudemos então assistir a uma corrida imediata às máscaras de proteção e demais equipamentos sanitários de urgência, produzidos em tempo recorde na China.
De todo o lado, em desespero, partiam e chegavam aviões, e mais houvesse, tal o pânico instalado, a que nem a Europa sempre sonhadora e por norma desprevenida, se eximiu. Tudo e todos para lá convergiam! Ninguém quis chegar atrasado, de governos centrais, a autarcas mais expeditos, dos pequenos Estados de todos os continentes, às grandes potências regionais.
Na verdade só a China estava preparada, e dotada de condições para apoiar e fornecer estes equipamentos de proteção, numa verdadeira cadeia logística sanitária global, num curto e dramático período de tempo. No entanto, e passado o pior da tempestade, neste cenário de emergência generalizada, e retirada a «bondade» de quem sempre ajuda, ficava um rasto algo amargo no pensamento de muitos, do reavivar do racional entre quem tem e afinal pode, e os outros com menor capacidade de reação e organização (vide Europa em relação à Itália). E tudo isto, num contexto de análise geopolítica, ainda que de forma genérica, dá sempre que pensar!
O século XX foi o século dos combustíveis fosseis, do carvão, do petróleo e do gás natural que dominaram todo o circuito energético global. A geopolítica dominante do Médio Oriente, com o seu petróleo, a partir dos anos setenta, equilibrou os interesses estratégicos dos EUA e da Rússia durante o período da Guerra Fria e geriu as muitas dependências e vulnerabilidades energéticas da grande maioria dos importadores (basta relembrar as muitas crises do petróleo e a temática da importância estratégica sempre presente do Golfo Pérsico).
A era do carvão terminou no início deste século, dada a crescente consciencialização ambiental e climática de grande parte da comunidade internacional; e a crise do Covid-19 veio acelerar o fim da era do petróleo.
O século XXI poderá ser o século dos metais críticos e das energias renováveis. Mas será que as dependências entre Estados e regiões, as tensões políticas e comerciais e o jogo de interesses geopolíticos vão acabar ou mesmo diminuir?
Olhemos para o caso dos metais estratégicos e dentro destes em especial, os minerais designados por terras raras. Com a transição energética em curso e as medidas tomadas face às alterações climáticas, estes ganharam maior relevância pela associação às novas tecnologias emergentes e às indústrias de «cutting-edge». Passamos agora a ouvir falar cada vez mais; de índio, lítio, das terras raras, selénio, gálio, telúrio e muitos outros.
Na atual corrida energética, estes metais estão presentes desde as células fotovoltaicas convencionais ou nas de «filme fino», a modelos de captura de energia solar, nos geradores por indução magnética (energia eólica), nas baterias e «storage» de diferentes tipologias, para além é claro dos EV, «fuel cells», catalisadores, iluminação fluorescente, computadores portáteis, câmaras, telefones celulares, e diferentes equipamentos e aplicações de elevada tecnologia diferenciadora.
Também ao nível da indústria militar, vamos encontrá-los nos equipamentos de visão noturna, de comunicações, GPS, projéteis guiados, veículos especiais, entre outras aplicações de defesa. Com a ciência e a tecnologia a fazer o seu caminho pelo século XXI, as tecnologias emergentes e disruptivas que aí estão (ver NATO Science & Technology Trends 2020-2040), irão necessariamente ser desenvolvidos novos conceitos ao nível da digitação e da robótica, da Inteligência Artificial, do «Hypersonic (weapons systems)», do espaço, das tecnologias quantum, e das «bio & human enhancement». Em face a este extraordinário desenvolvimento a que temos assistido nos últimos anos, e num cenário energético futuro mais eletrificado, digitalizado e descentralizado, é natural que a disputa geopolítica e os interesses das grandes potências globais subam de tom pelo controlo das tecnologias emergentes.
Reconhece-se em boa verdade, que a China detém e gere na prática o monopólio da grande maioria destes minerais estratégicos, em especial as terras raras. Esta situação causará naturais preocupações no âmbito da segurança energética e da própria componente de segurança e defesa da grande maioria dos países importadores com capacidade industrial. Em causa a excessiva dependência destas matérias-primas.
A especificidade do mercado industrial dos minerais de importância estratégica, além das reservas existentes e com capacidade de exploração e rentabilidade, apresenta uma matriz base de valorização estratégica, que implica um desenvolvimento integral das respetivas etapas nas cadeias produtivas. Neste ciclo industrial, é tido em conta não só a prospeção, exploração e refinação, mas também todo o processo de transformação, nomeadamente a avaliação dos respetivos ciclos de vida e o próprio conceito integrado de economia circular, incluindo a reciclagem, substituição ou recovery das matérias-primas utilizadas.
Imagem :https://staticseekingalpha.a.ssl.fastly.net
A China para além das suas enormes reservas, e da clara vantagem no ciclo de processamento técnico e comercial « (…) produces today at least 80 percent of antimony, bismuth, gallium, magnesium and tungsten and more than 65 percent of natural graphite, germanium and scandium (…) is the largest exporter and consumer of rare earths in the world and has supplied more than 90 percent of the world demand in past decades»[1]. Estes valores dão à China uma enorme superioridade nos mecanismos comerciais a estabelecer. Existem no entanto outros Estados com algumas importantes capacidades de matéria-prima (imagem supra), e mesmo alguns dotados de reservas consideráveis, a serem eventualmente exploradas.
Évolution de la consommation et de la production de terres rares. Mineralinfo.fr em https://www.contrepoints.org
Tal como iniciámos esta crónica, com a atual emergência sanitária global, também aqui tratamos de matéria demasiado sensível para os Estados, agora no contexto da segurança energética e mesmo para a própria segurança nacional.
sta é uma verdadeira pedra no sapato a curto prazo, para os EUA e seus aliados ocidentais. Atente-se para já às disputas ruidosas sobre o 5G, neste embate entre as duas grandes potências globais (EUA e China). A concentração e a enorme vantagem da China nesta área é fator de natural preocupação das democracias a ocidente e dos vizinhos Japão, Malásia, Taiwan, Austrália e Coreia do Sul, mas também da Índia e Rússia, todos eles muito atentos e com especiais interesses e capacidades industriais já em desenvolvimento. A Austrália apresenta já um potencial de destaque no conjunto da indústria de mineração, e tem uma estratégia assertiva neste domínio.
A Europa por seu lado, debate-se com a escassez de matérias-primas, nomeadamente de terras raras. A procura de um modelo associado às novas tecnologias energéticas de baixo carbono, que constituem a base do seu «European Green Deal», devem ser compatíveis com os sistemas de economia circular e circuitos de reciclagem apropriados, e da própria gestão dos recursos secundários[2], que não a remetam para um espaço de total dependência geoeconómica e geopolítica de terceiros.
Por outro lado, as disponibilidades geológicas existentes no espaço europeu, de prospeção e exploração de recursos minerais (vide caso do lítio em Portugal), e outras existentes no Norte da Europa, estão sempre muito dependentes de apertadas normas e disposições de efeito burocrático. Também ao respeito pelas necessárias regras e práticas ambientais, às populações diretamente envolvidas, aos grupos de pressão existentes, e num patamar não despiciente, ao evidente risco político envolvente a estas decisões!
Mas se a UE não reforçar em tempo uma estratégia coerente e eficaz entre os seus Estados, nesta matéria sensível, e este é o seu tempo, irá ficar cada vez mais dependente de tudo e de alguns. E no pior dos seus sonhos, poderá perguntar, como fez o simpático Calvin (Calvin & Hobbes): «Pai não apagues a luz! Não viste se havia monstros debaixo da cama?».
10 de maio 2020
Eduardo Caetano de Sousa
Vogal da Direção
[1] The Strategic importante of rare earth minerals for NATO, EU and the United States and its implication for the energy and defense sectors by Ms Marju Kõrts in Energy Security: Operational Highlights nº 13.
[2] Ver Carlos Nogueira em «Materiais para as tecnologias da energia: desafios e o papel da reciclagem»